Esta vila é muito abundante em água e de excelente qualidade.
No Rocio debaixo da porta principal da ermida de Sant&rsquoAna tem um grande arquinha donde sai tanta água que depois vai correr em três bicas de pedra num chafariz e ainda transborda e é por absoluto (diz o nosso cronista padre Chagas) a melhor água da ilha &mdash ainda que o dr. Gaspar Frutuoso afirme ser a melhor de todas estas ilhas.
A esta grande corrente junta-se outra mais saborosa e cristalina, que nunca se tolda por mais que sejam as chuvas, nem aquece em tempos de estio ou se seca, antes corre sempre em abundância no chafariz de três grossas bicas de metal, que no ano de 1824 lhe mandou fazer o senado da Câmara. Ambos estes chafarizes entram em tanques para o serviço de lavagem de roupas e bebida dos gados que de muito longe vem à vila : até que finalmente entram no grande depósito a reunir-se à ribeira do Pico da Cruz que nele entra para tocar os nove moinhos do Arrabalde.
Foi aquela primeira água em princípio da povoação da ilha achada por um frade chamado Frei João, o qual com algumas pessoas saltaram no calhau onde saía a grota, que de seu nome se apelidou &mdash Ribeira de Frei João &mdash e porque carecendo eles de água, entrou o frade para cima, e vero achar uma pequena vertente já a meio da grota mas ainda pouco contente com este achado, prosseguiu até o vale, em tanto que deu com a origem donde saía a ribeira, que os seus logo chamaram &mdash de Frei João &mdash e por tradição se conta que acolá onde o frade achou o primeiro sinal de tão rico dom, em um campo elevado, disse a primeira missa à Virgem da Graça e assim parece, por ser a dita Senhora a primeira que os antigos edificaram naquele célebre lugar uma ermida deste distrito, como adiante se há-de mostrar.
Saía esta água ao pé de uma barroca sobre a qual se colocou depois a ermida de Santa Ana. Mas porque assim mesmo era pouca a força desta ribeira para tocar as três grossas moendas que ali fez o donatário João Vaz, ou já tinha feito Álvaro Martins Homem, se foi buscar, com grande custo, um braço da Ribeira do Testo para no tempo aumentar as águas estagnadas, aliás somente se moía às terças e sextas-feiras, quando muito, em tempo de Verão debaixo de rigorosas posturas e acordãos da Câmara, e isto não sem grave perigo dos moradores do Arrabalde por ser o tanque cingido unicamente de um barbocão sujeito a transbordar e a quebrar com ruído, como por vezes acontecera até que já pelos anos de 1780 lhe mandou fazer o remataste João Rodrigues Freixo um grosso muro de cantaria bem encaliçado, com que segurou as águas e as vidas dos moradores do sobredito lugar do Arrabalde, Foi director e inspector desta obra Francisco Machado de Ormonde,. que pelo seu povetenor, e bem reconhecido zelo público fez construir este grande muro com a segurança possível e assim mesmo quando são muitas as chuvas, é míster correr a quebrar o braço da Ribeira do Testo, por. onde hoje vem encanada a mencionada água do Pico da Cruz, que depois de fertilizar os campos na distância de duas léguas, se vem juntar naquele depósito. Obra foi a deste último encanamento que merece lhe consagremos aqui algumas linhas, como um monumento de glória a seus autores, porque entendemos, (como já a propósito se explicou um grande génio francês) só devem viver nos escritos os que pelas acções que fizeram se imortalizaram.
Desenganado o marquês de Torres Novas de não se lhe poder continuar, como a seus antecessores, o pernicioso privilégio do exclusivo das moendas nesta ilha, afrouxou de perseguir&bull aqueles que nalgumas ribeiras começavam a construir moinhos em seu proveito e do público, e por isto um Alexandre Franklin, morador em Angra, assentou uma dessas moendas no referido lugar do Arrabalde e pelo bem que nesta empresa houve animou o padre José Patrício de Ormonde a que acima dele edificasse dois junto das casas onde passou a morar. Decorrendo vários anos lembrou-se o padre de trazer aos seus moinhos a corrente de águas que descobrira no mato junto do Pico da Cruz, na jurisdição desta mesma vila, e para isso convidou ao capitão José Machado Homem da Costa e a outros que na mesma ribeira tinham moendas, para que todos juntos costeada a grande despesa, efectuassem o intento de uma tal obra na verdade gigantesca para as débeis forças destes empreendedores: e meditando senhorearem-se das águas pare_ delas disporem como lhes conviesse, compraram o terreno por onde melhor se podiam sangrar, contra o que tinham assentado em câmara. Assim ardilosamente habilitados, deram com efeito impulso ao trabalho o qual, apesar de muitos incómodos e despesas lhes parecia, e a todo mundo, infrutífero e baldado, já pela situação e desabrido daquele sítio, como pela dureza das pedreiras, e muito mais pela incerteza da direcção das águas em tanta profundidade que excedia a nove braças. Em tamanha extremidade, e já divergentes entre si trataram de negociar com certos indivíduos da parte da Praia afim de lhes comprarem aquelas águas, a que chamavam propriedade sua.
Opôs-se-lhes então a Câmara Municipal e cuidou muito seriamente de os expropriar, propondo-lhes a acção competente ante o administrador do concelho o capitão José Ferreira Drumond mas correndo seus termos foi afinal julgada improcedente, por sentença do Concelho de Distrito de por defeitos do processo, e pelos mais fundamentos constantes da cópia
Contudo, como esta deliberação tinha recursos em si mesma, e a Câmara cuidava incessantemente em manter o direito de seus administrados, lançando já finta e derrama para haver a si a empresa, mudaram então de rumo os sobreditos empreendedores, e começaram a usar de outra linguagem implorando misericórdia a quem os ajudasse naquele inesperado transe. Para isto foram valer-se do rico e benéfico cidadão Manuel Gonçalves Fagundes, que vendo mais aberto o caminho da sua celebridade do que o futuro próspero de seus interesses, muito oportunamente aceitou e se incumbiu daquela dificultosa e árdua empresa, a maior que nesse tempo andava entre mãos cá na ilha, sem outras condições que as estipuladas na escritura pública que disto se lavrou, para segurança dos transigentes, mas que certamente não era só o quanto a Câmara queria segurar na sua impugnação queria a par do interesse particular as comodidades, e garantias dos povos, persuadida de que nenhuma pessoa podia nem devia fazer presa em águas, por ser a subsistência dos viventes. Felizmente depois de três anos de trabalhos incalculáveis, e despesas enormes, chegou a empresa ao cabo, e verificando-se o encanamento desta copiosa corrente, não só em proveito dos proprietários, como também dos povos de uma grande parte da ilha, que sem custo gozam deste benefício comum, e rico presente da natureza. Tão inesperada era esta fortuna na Vila de São Sebastião, como nas outras povoações e tão condescendente foi o novo empreendedor para com elas, franqueou-lhes aquela corrente, sem outra condição que o não lha desviarem do leito do encanamento : como generoso, em facultar a licença para dentro nela se fazerem tanques e pias em que os gados bebessem, e dois chafarizes nas estradas principais, com que se pôs o remate a esta obra assaz meritória, que certamente não tem igual entre os antigos e modernos feitos deste país histórico.
Além destas copiosas fontes e ribeiras, ainda há outras pequenas dentro na vila, e em quase todas as casas poços de excelente água, com que se ihe não pode disputar a primasia neste género : e de tamanha abundância não só os seus moradores, mas as povoações circunvizinhas se utilizam, em distância de uma légua : assim para as moendas, como para beberem, e lavarem, e fartarem seus gados. E com razão se supõe que este lugar, antigamente com o título de Ribeira do Frei João pelo facto do achado da fonte, fora logo habitado, chegando a ter, como afirma o dr. Frutuoso, (o que eu duvido) quinhentos vizinhos, ricos lavradores, e proprietários, ainda que o local era então muito pantanoso, e nele parece se davam muito poucas providências para o reduzir a uma melhor perspectiva, e comodidade de seus habitantes.